Respirar fora da caixa para des-extinguir futuros

Inspirado na palestra "Corpo-Terra em Crise", realizada na SP Climate Week 2025

Com Lua Couto e Luiza Voll 


Para nos guiar na jornada deste conteúdo, temos duas vozes que se complementam. De um lado, Lua Couto, cuja pesquisa em narrativas regenerativas parte da perspectiva do Sul Global, de uma mulher amazônica afro-indígena. Do outro, Luiza Voll, publicitária que, insatisfeita com as respostas superficiais da sustentabilidade corporativa, mergulhou na neurociência e no estudo das emoções para entender a raíz da nossa resistência à mudança. A união da sabedoria decolonial com a compreensão da mente humana nos oferece um mapa para navegar o labirinto que nós mesmos construímos, e onde agora estamos presos.

O feitiço das paredes invisíveis

Houve um tempo em que a humanidade, numa rebelião contra a finitude, se apaixonou por uma ideia perigosa: a de que a realidade poderia ser indexada, controlada e encaixotada. Em um poema que serve tanto de diagnóstico quanto de portal, a autora e pesquisadora brasileira Vanessa Andreotti descreve esse processo como um feitiço.

"humanos se tornaram obcecados com o significado como uma maneira de indexar e controlar a realidade, dividindo o mundo em pedaços e colocando esses pedaços do mundo em caixas".

Na metáfora, as caixas são as estruturas invisíveis, mas poderosamente reais, que definem nosso mundo: "casas-caixa, fronteiras-caixa, disciplina-caixa". Em nome do progresso e da civilização, essas caixas justificaram a expropriação, o roubo e a classificação do valor da vida. Prometeram-nos segurança, mas as paredes que construímos para proteger nossos tesouros acabaram por nos aprisionar numa "pobreza no dieto do vazio da existência". Esquecemos de como sonhar para além dos muros.

Este feitiço, que ❝aumentou suas cabeças-caixa, encolheu seus corações, entorpeceu suas mãos❞, não é apenas uma metáfora. É a condição que hoje chamamos de "metacrise": uma teia de crises sobrepostas e interconectadas — na economia, na saúde pública, no nosso próprio sentido de existência. A crise climática, como explicam Lua Couto e Luiza Voll, é o sintoma febril de um corpo planetário doente de separação, o resultado inevitável de uma civilização que tentou viver em caixas estanques, ignorando a interconexão de todas as coisas.

O feitiço que nos aprisiona é, em sua essência, um estado de consciência. As estruturas externas de controle (o colonialismo, o materialismo, a monocultura) são reflexos de uma arquitetura mental. Essas "caixas" culturais oferecem o software perfeito para o hardware do nosso cérebro, que, em seu modo padrão, busca eficiência através de pensamentos automáticos. A sociedade nos entrega as caixas, e nossa mente, por default, as reforça. "Sentir a caixa", como elas propõem, é o primeiro passo para iniciar um processo de neuroplasticidade coletiva — a possibilidade de observar esses padrões para, quem sabe, escolhermos outros.

A mente que desenhou a própria prisão

Se as caixas são a estrutura da nossa prisão, a mente é a sua arquiteta. Antes de imaginarmos um mundo diferente, precisamos, como nos convida Luiza Voll, fazer a pergunta fundamental: ❝Como é a mente que tem criado esse mundo e também aceitado essa história?❞. A resposta não reside numa falha moral, mas no funcionamento do nosso hardware biológico, uma ferramenta que, em piloto automático, se volta contra nós.

O epicentro dessa dualidade é o nosso córtex pré-frontal. Ele nos dá a capacidade de viajar no tempo, planejando o futuro e aprendendo com o passado. No entanto, essa mesma capacidade é a fonte da nossa angústia. Somos, talvez, a única espécie que se preocupa com o futuro e rumina sobre o passado, e nesse processo, essa habilidade "nos rouba o presente". Diferente dos animais, que só se preocupam com o momento presente, nós temos o passado e o futuro vivendo em looping na nossa imaginação.

Luiza reforça ainda que, quando não estamos ativamente focados, nossa mente entra na "Rede de Modo Padrão" (Default Mode Network), um estado de pensamento divagante e automático, que muitas vezes tem pouca ou nenhuma conexão com a realidade. Essa mente, operando a partir de seus padrões básicos, nos aprisiona em três armadilhas universais:

  1. Busca pela felicidade. "Todos queremos ser felizes", afirma Luiza. A grande ilusão da nossa cultura é a crença de que o caminho para essa felicidade está no mundo externo: na prosperidade, no status, na próxima compra. Buscamos a felicidade em um mundo cuja característica fundamental é a impermanência. O resultado é um ciclo de desejo e frustração, uma corrida interminável, como a "rodinha do hamster".

  2. Aversão ao sofrimento. Nosso desejo de nos proteger da dor é natural, mas a estratégia que adotamos é o isolamento. Construímos muros, catracas e fronteiras. A lógica do "eu versus o outro" nasce desse medo, aprofundando o vazio e nos desconectando da teia da vida que poderia nos sustentar.

  3. Ignorância, arrogância e ilusão de que sabemos. Agimos como se tivéssemos o mapa completo, quando temos vastos recursos inexplorados sobre a natureza da nossa própria consciência. É essa arrogância de "não saber e agir como se soubéssemos", que nos impede de caminhar para futuros regenerativos.

Ao observar nossa arquitetura mental, uma conexão profunda se revela: o modelo econômico de crescimento infinito, que Lua descreve como a "maior incongruência de todas", não é apenas uma política falha; é a externalização perfeita da "rodinha do hamster" da nossa mente. A lógica do sistema atual, de uma busca insaciável por "mais" que ignora os limites do planeta, é projetada para explorar e amplificar essa vulnerabilidade específica da psique humana. A metacrise é a consequência planetária de nossas mentes coletivas, não examinadas e instrumentalizadas.

Às vezes, precisamos fechar os olhos para ver

A análise intelectual da nossa prisão mental é necessária, mas insuficiente. A transformação exige um mergulho no campo da experiência sentida. É aqui que Lua Couto nos oferece uma tecnologia ancestral para o "des-anestesiamento": a meditação da dor da Terra. O convite inicial já subverte a lógica vigente. Nossa obsessão com a visão externa, com os dados, nos tornou cegos para as verdades percebidas internamente.

Inspirada no trabalho da ecofilósofa Joanna Macy, a prática guiada por Lua, ao contrário de um exercício de relaxamento, é um ato de coragem radical. Um convite para ❝abrir sua consciência para o sofrimento do mundo❞. A instrução é permitir que as imagens da dor — de pessoas em isolamento, em hospitais, em campos de refugiados, dos nossos irmãos não-humanos — fluam através de nós, carregadas pela respiração. Sem nos afogar na dor, apenas deixando-a passar por nossos corações.

Esta prática confronta diretamente o principal mecanismo de defesa que mantém as paredes da caixa intactas: o anestesiamento. A fadiga de compaixão é compreensível, mas também faz parte do problema. Sentir é o início da dissolução das fronteiras entre o "eu" e o "outro", entre o "humano" e a "natureza". A meditação inverte essa lógica, oferecendo uma forma de conhecimento que vem através da relação, não da extração. Ao nos permitirmos sentir a dor da Terra, estamos nos lembrando de uma verdade que o colonialismo nos forçou a esquecer: "nós somos a Terra".

Para aqueles que temem ser despedaçados por essa dor, Lua oferece uma garantia poderosa: "lembre-se que o coração que se abre pode segurar o mundo inteiro". A capacidade de amar, e portanto de sentir, não é frágil. É a força mais resiliente do universo.


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As quatro chaves da lucidez

Uma vez que ousamos sentir, e que a interconexão se torna uma verdade sentida no corpo, precisamos de um novo arcabouço intelectual. Se a antiga mentalidade era a da caixa, a nova é a da lucidez. E essa lucidez, como explica Luiza, não é um dom inato, mas "uma habilidade" que se cultiva. A palestra oferece quatro chaves, um kit de ferramentas para desmontar a prisão de dentro para fora.

  • A primeira chave é a Interdependência. Isso vai além da ideia de que "estamos todos conectados". É a compreensão visceral de que somos uma "espécie muito frágil", cuja existência depende de condições muito específicas. Lucidez é saber que nosso bem-estar individual é uma impossibilidade sem o bem-estar do todo. É a verdade contida na frase que deveria ser o lema do nosso tempo: "só vai ficar bom quando ficar bom para todo mundo".

  • A segunda chave é a Insatisfatoriedade. É o reconhecimento de que a busca por satisfação duradoura em coisas externas e impermanentes é a armadilha da "rodinha do hamster". Essa sabedoria nos permite, finalmente, parar de correr, não por ascetismo, mas por uma lúcida compreensão de que a roda não leva a lugar algum.

  • A terceira chave é a Impermanência. A aceitação de que a única constante é a mudança. Longe de ser uma visão pessimista, é profundamente libertadora. Significa que o que é bom passa, mas, crucialmente, "o que é ruim também". A vida não é uma fotografia estática, é um filme em movimento. Lua invoca a escritora Octavia Butler para dar a esta verdade uma dimensão sagrada: ❝Se existe uma verdade na vida, a verdade é que Deus é mudança❞.

  • A quarta e última chave é a Ausência de essência fixa. É a compreensão de que não existem absolutos. Pessoas e situações não são entidades fixas e imutáveis. Alguém não "é" horrível; essa pessoa pode ter agido de uma forma horrível. Essa distinção abre um espaço imenso para a compaixão e a transformação. Se nada é fixo, tudo pode mudar.

Esses quatro princípios formam um antídoto cognitivo preciso para as ilusões que sustentam as "caixas". A interdependência dissolve a parede da separação. A insaciabilidade e a Impermanência desmantelam o motor do materialismo. A ausência de essência fixa quebra a lógica da categorização rígida que justifica a exclusão.

Des-extinguindo nossas diferenças

O trabalho interno de sentir e cultivar a lucidez é o alicerce, mas a transformação se manifesta no mundo através das nossas relações. A jornada para fora da caixa é, em última análise, uma jornada em direção ao outro, delineando um futuro construído sobre a qualidade radical dos nossos encontros.

O objetivo não é trocar uma caixa por outra, mas aprender a viver sem a necessidade de uma única caixa que contenha tudo. É a transição de um "universo" (um único mundo, uma única história, uma monocultura violenta) para um "pluriverso" – um mundo onde muitos mundos possam coexistir. Para habitar um pluriverso, a primeira narrativa a ser abandonada é a do herói. ❝No fim da história não tem um herói salvador. Não vai vir ninguém salvar a gente❞, declaram as palestrantes.

Essa história é "nociva" porque nos coloca em um perpétuo "modo de espera", abdicando da nossa agência. No lugar do herói solitário, surge uma tecnologia social mais simples e poderosa: o conceito de "aliados imperfeitos", desenvolvido pela autora e ativista Loretta Ross. É um framework para construir pontes em um mundo fraturado, baseado em três práticas:

  • Presumir boas intenções: partir do princípio de que as pessoas estão tentando acertar, mesmo quando erram.

  • Aproximar-se com curiosidade: escutar com o desejo genuíno de entender, suspendendo o julgamento.

  • Oferecer graça: aceitar as imperfeições (nossas e dos outros), reconhecendo que todos estamos aprendendo.

Longe de ser passividade, é uma estratégia inteligente para o engajamento real. Como Lua compartilhou, a partir da experiência de Ross, ❝você odeia alguém até você chegar perto o suficiente❞. O ódio só sobrevive à distância. Este framework se faz como caminho para o pensamento de pluriverso. Um mundo com múltiplas verdades coexistindo será, por natureza, um lugar de atrito. O modelo dos aliados imperfeitos oferece as habilidades relacionais para navegar esse atrito sem recorrer à violência.

Toda essa transformação tem um palco, um chão sagrado. ❝A Terra é o lugar onde nos encontramos❞. O planeta não é um problema a ser resolvido; é o campo do encontro. E é nesse encontro, na nossa capacidade de estar na presença da diferença, que reside a nossa salvação: ❝des-extinguir o meio das nossas diferenças❞.

Pequenos e silenciosos futuros

A conclusão de uma jornada tão profunda não poderia ser uma solução grandiosa, pois isso seria apenas construir uma nova caixa. Em vez disso, o caminho apontado devolve o poder individualmente e comunitariamente. Focando na potência do que é aparentemente pequeno, do cotidiano e, acima de tudo, do sonhar e imaginar.

A obsessão com a "grande" escala da crise muitas vezes nos paralisa. Lua e Luiza nos convidam a reavaliar essa métrica de impacto, citando a história de um ávido ativista que percebeu que a ação de maior impacto que poderia tomar em determinado momento era cuidar de sua mãe doente. O ordinário, o cuidado próximo, nos devolve à materialidade da vida.

Duas metáforas emergem para descrever essa nova forma de agência silenciosa:

  • A primeira é a infiltração da água. Em vez de tentar derrubar o sistema com a força bruta, a proposta é agir como a água: fluida, persistente, infiltrando-se pelas rachaduras e transformando a estrutura de dentro para fora, silenciosamente.

  • A segunda é a do broto que germina. Um ditado chinês nos lembra que a queda de um carvalho faz um barulho imenso, mas a floresta cresce em silêncio. O novo não se anuncia com estardalhaço. "Tem muito broto germinando", e é neles que reside a verdadeira transformação. Para que esses brotos cresçam, eles precisam de um solo fértil: a imaginação.

Luiza nos provoca a notar como nossa cultura é fértil em distopias, mas pobre em utopias. Resgatar a capacidade de sonhar torna-se um ato político vital, uma prática de "imaginação ativa". Como Lua nos lembra, nós mesmos somos "o sonho de outras pessoas" que vieram antes; temos a responsabilidade de continuar sonhando para os que virão.

A tensão entre o "grande" e o "pequeno" se resolve quando entendemos a mudança como um padrão fractal. As ações regenerativas que praticamos em nossas vidas — ser um aliado imperfeito, cuidar de alguém — não são apenas versões menores da mudança sistêmica; elas são o mesmo padrão se manifestando em uma escala diferente. O broto contém o projeto da floresta. A mudança sistêmica acontece quando um número suficiente de brotos, cada um praticando o novo padrão, se conecta e forma um novo ecossistema.

A nota final é de uma esperança sóbria. A ideia de que a humanidade pode estar saindo de uma "adolescência" coletiva (egocêntrica e cega para as consequências) e entrando em uma fase mais adulta. Uma fase em que estamos prontos para assumir a responsabilidade por nossa herança e usar essa maturidade para construir, encontro a encontro, um futuro onde caibam muitos mundos. A jornada para fora da caixa não termina com a chegada a um destino, mas com a descoberta de que podemos caminhar, juntos, em campo aberto..


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Lua Couto é pesquisadora de narrativas regenerativas, facilitadora e curadora de futuros a partir de uma perspectiva plural e insurgente do Sul Global. Afro-indígena amazônida, Lua atua no encontro entre ancestralidade, inovação e imaginação estratégica, criando experiências transformadoras que unem ciência, arte, intuição e regeneração. Diretora de Futuros Regenerativos na Purpy e Fundadora do coletivo Futuro Possível, trabalha com narrativas e metodologias que provocam rupturas criativas e cultivam futuros vivos.

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Luiza Voll é sócia e diretora criativa da Contente, comunicadora social, professora e palestrante em Equilíbrio Emocional pelo método Cultivating Emotional Balance (Einstein). Sua pesquisa e prática exploram as formas como a tecnologia colide com nosso mundo interior, nossos relacionamentos, instituições e nossa sociedade como um todo. Suas especializações em sustentabilidade se conectam com os estudos de Equilíbrio Emocional e Atencional, consolidando o conhecimento sobre regeneração interna.

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