A escolha da publicidade entre a miragem e a regeneração

Um chamado para a indústria da comunicação abandonar a neutralidade cúmplice e tornar-se uma força de transformação positiva

Por Carla Purcino, para o Podcast Raízes da Inovação 


Em um mundo saturado por narrativas desenhadas para convencer, vender e moldar desejos, uma indústria que movimenta mais de 1 trilhão de dólares globalmente¹ raramente para e se questiona: qual é o nosso verdadeiro propósito?

A publicidade, em sua essência, é uma máquina de fornecer respostas. "Compre isto", "acredite nisto", "deseje aquilo". A provocação "Publicidade Regenerativa" emerge como uma linha de investigação profunda e urgente, longe de ser mais um termo da moda destinado ao esvaziamento. Nas palavras da comunicadora estratégica Carla Purcino (uma das vozes que tem semeado essa reflexão no Brasil), trata-se de uma "abertura de diálogo sobre o que pode vir a ser uma nova forma de atuar, e não de uma bala de prata ou solução mágica."

Essa discussão transcende os muros das agências. Ela envolve um vasto e complexo ecossistema de empresas: anunciantes, veículos de comunicação, produtoras, empresas de tecnologia e a crescente economia de criadores de conteúdo. Todas são como nós em uma mesma teia, co-responsáveis pela cultura que ajudam a construir.

O convite é para iniciar um diálogo que se conecta à raiz da missão do Innovation Roots: questionar os paradigmas vigentes para germinar um futuro onde os negócios se reconectam com a vida, transitando da exploração para a regeneração e da razão isolada para uma consciência expandida².

Para uma indústria construída sobre a confiança das respostas assertivas, admitir "eu também não tenho certeza", como faz Purcino, é um ato radical. É o primeiro passo para abandonar a armadura da certeza e cultivar a humildade da escuta. É, em si, um ato regenerativo.

O espelho quebrado: diagnóstico de uma indústria em crise de identidade

Para compreender a necessidade da regeneração, é preciso, antes, diagnosticar a degeneração. A indústria da comunicação, apesar de sua aparência inovadora, opera sob um paradigma fundamentalmente falho: o mito da neutralidade. Por muito tempo, o setor se posicionou como um mero prestador de serviços, um canal técnico que apenas executa a mensagem briefada pelo cliente, isentando-se de julgar seu conteúdo ou intenção.

Ao se isentar da responsabilidade pelo conteúdo que veicula, o setor torna-se cúmplice, seja na disseminação de desinformação, na promoção de um consumismo insustentável ou na maquiagem de práticas corporativas prejudiciais.

Essa postura defensiva às mudanças de paradigmas, como disse Carla, é a "Vanguarda da Retaguarda". A publicidade, que se orgulha de ditar tendências, é, na verdade, "formidável para fazer coisas chegarem na massa quando elas já passaram pelo abismo". Ou seja, ela espera que movimentos sociais e pautas complexas se tornem seguras, palatáveis e, principalmente, lucrativas, para então abraçá-las. Foi o que aconteceu com as pautas identitárias da última década, que, segundo nossa entrevistada, foram "cooptadas e absorvidas por um discurso neoliberal", perdendo sua força política coletiva para se tornarem ferramentas de marketing individualista.

Aqui reside o grande paradoxo da indústria: ela é uma das mais potentes criadoras de cultura do mundo, capaz de gerar bordões e hábitos que permeiam gerações, mas que se recusa a assumir a responsabilidade pela cultura que cria. Tal recusa representa uma escolha intencional e estratégica para proteger um modelo de negócio que depende de servir a qualquer anunciante com grandes verbas de comunicação, independente de seu impacto no mundo. A crise de identidade da publicidade é uma ignorância deliberada para evitar a prestação de contas.


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DNA da regeneração publicitária

Superar a crise de identidade exige uma visão holística e um novo modelo que integre o discurso e a prática. A publicidade regenerativa, na visão de Carla Purcino, pode ser compreendida por meio da metáfora de uma "dupla hélice", como uma molécula de DNA. Ambas as hélices são interdependentes e essenciais.

  • A primeira hélice é a externa: a mensagem, “o que a gente fala”. Trata-se de redirecionar o imenso poder narrativo da indústria. Em vez de fabricar desejos artificiais e promover o consumo desenfreado, o foco se desloca para inspirar escolhas mais conscientes, promover a educação para a cidadania e construir narrativas que fortaleçam o tecido social e a nossa conexão com o planeta. É usar a criatividade para vivermos melhor.

  • A segunda hélice é a interna: a operação, “como a gente se transforma”. Este é o trabalho mais árduo, "muito longo e muito intenso", e frequentemente negligenciado. Envolve uma revisão profunda das estruturas, processos e da cultura de toda a cadeia produtiva. Como são as relações de trabalho? Como os fornecedores são remunerados? Quais os critérios para aceitar um novo cliente? Que impacto nossa produção gera? Sem essa transformação interna, qualquer mensagem externa, por mais bem-intencionada que seja, corre o risco de ser apenas um verniz.

Para navegar essa transformação, é crucial delinear os conceitos que muitas vezes são usados de forma vaga. Carla nos oferece definições precisas que servem como bússola:

  • ESG (Environmental, Social, and Governance): é, fundamentalmente, sobre negócios. É um framework de gestão de riscos e oportunidades para garantir a "continuação de um negócio", sua perenidade em um mundo que cobra novas posturas.

  • Sustentabilidade: trata-se da "manutenção dos negócios e do meio ambiente". O objetivo é sustentar o sistema atual e reduzir danos. Contudo, em um sistema que já é degenerativo, sustentar o status quo é insuficiente.

  • Regeneração: é o passo seguinte e necessário. Uma vez que "a gente já degenerou" o planeta e as relações sociais, é preciso ativamente curar, restaurar e revitalizar os sistemas dos quais dependemos. É sobre deixar o mundo melhor do que o encontramos.

A obsessão da indústria com a hélice externa (a mensagem) tem sido uma distração conveniente do trabalho muito mais difícil e ameaçador da transformação interna (a operação). Um sistema doente não pode gerar resultados saudáveis de forma consistente. Campanhas com propósito, criadas em ambientes de trabalho tóxicos e para clientes com práticas extrativistas, são a mais sofisticada forma de purpose-washing. A dupla hélice nos força a integrar o falar e o agir.


 
 

Os pilares da transformação: governança, diálogo e coragem

Se a dupla hélice é o "o quê", os pilares da transformação são o "como". Eles representam as mudanças de estrutura e mentalidade necessárias para dar vida à publicidade regenerativa. São três: Governança, Diálogo e Coragem.

  • Governança: uma prioridade inegociável
    Longe de ser mera burocracia, a governança é o sistema operacional ético de uma organização. Carla Purcino afirma categoricamente que "o nível de governança das agências é praticamente inexistente". Deve ser a prioridade máxima, pois uma governança bem estabelecida possibilita melhores decisões nos campos social e ambiental.

  • Diálogo: para além da câmara de eco
    A transformação exige um novo tipo de conversa. O diálogo, aqui, busca a "antítese" para, juntos, construirmos uma "síntese", como na filosofia, em vez de apenas buscar concordância. Isso requer sair da zona de conforto das câmaras de eco, onde "publicitário anda com publicitário" e as mesmas ideias são validadas em um ciclo fechado. O desafio é chamar para a conversa quem pensa diferente: o cliente conservador, o colega cético, o crítico do setor. O objetivo é encontrar o "campo comum" e, a partir dele, construir "ganhos incrementais", reformulando a própria compreensão do que é dialogar. Deve-se trocar a necessidade de ter razão pela vontade de construir junto.

  • Coragem: agir com o coração e comprometer o corpo
    Nenhum desses pilares se sustenta sem coragem. E coragem, como define a Carla Purcino, é "agir com o coração". É ter a força de manifestar suas convicções "mesmo que sua voz trema", mesmo que isso gere desconforto ou desafetos. A transformação exige implicação pessoal, o ato de "comprometer o seu corpo naquela questão". A experiência de Carla na militância política desde a Eco-92 ilustra como as vivências que "atravessam o peito e a alma" moldam a prática profissional. A regeneração é uma causa a ser encarnada.

Esses três pilares são interdependentes e alimentam-se mutuamente. É a coragem que dá o impulso para iniciar um diálogo difícil. É esse diálogo que revela as falhas sistêmicas e cria a consciência da necessidade de uma governança robusta. Por sua vez, uma boa governança cria a segurança psicológica que encoraja mais atos de coragem e diálogos mais honestos, gerando um ciclo virtuoso de transformação.

O dilema em campo: as bets como símbolo do desafio sistêmico

Para que a discussão não permaneça no campo abstrato, um caso real e urgente serve como um microcosmo dos desafios apresentados: a explosão das casas de apostas, as bets. Carla Purcino classifica o tema como "muito delicado, muito sério... uma coisa imperativa".

O dilema das bets é a materialização do conflito. De um lado, uma injeção massiva de capital que gera uma forte dependência financeira para clubes de futebol, atletas, creators, veículos de comunicação e agências. Do outro, um rastro de externalidades negativas graves: o vício em apostas, o endividamento de famílias e o "esgarçamento do tecido social". O cenário materializa perfeitamente o problema da neutralidade cúmplice: agências, veículos e toda a cadeia se beneficiam financeiramente enquanto se isentam da responsabilidade pelo produto nocivo que promovem.

As soluções propostas por Purcino seguem um caminho já trilhado por outras indústrias, como a do tabaco e do álcool: regulamentação da publicidade, taxação pesada revertida para programas de educação e tratamento de viciados, além de regras claras sobre quem pode anunciar e onde. A questão, no entanto, vai mais fundo, tocando em uma dinâmica de "colonialismo publicitário". Grandes conglomerados internacionais pressionam suas filiais no Brasil por resultados financeiros agressivos, o que leva a jornadas de trabalho exaustivas e a uma maior propensão para aceitar contas problemáticas, como as das bets, para bater metas.

O caso das bets é, portanto, um teste de estresse para a capacidade de autorregulação e visão de futuro da indústria. A falha em antecipar e endereçar proativamente o problema expõe a fragilidade da ética e governança do setor. É um fracasso do paradigma atual se desenrolando em tempo real.

Cannes 2025: o teste de estresse do DNA regenerativo

O Festival de Publicidade de Cannes de 2025, que celebrava o "Ano do Brasil", tornou-se um estudo de caso em tempo real para a teoria da dupla hélice. O estopim foi um caso emblemático: uma campanha de uma das mais tradicionais agências do país para uma gigante de eletrodomésticos, que ganhou o Grand Prix, prêmio máximo do festival. A "hélice externa" era irretocável: um programa de troca de geladeiras antigas por novas, com o pagamento atrelado à economia na conta de luz. Contudo, a "hélice interna" estava em colapso: a ação nunca existiu. Para dar uma pretensa veracidade ao vídeo de inscrição, a agência usou inteligência artificial para manipular falas de uma figura política e adulterar uma reportagem de um grande canal de notícias.

A mensagem era regenerativa, mas o processo foi degenerativo. O que vimos foi uma falha retumbante de ética e governança, onde a pressão por reconhecimento atropelou a integridade. A responsabilidade é de toda a cadeia: da agência que criou o case, do anunciante que, em tese, aprovou, e do próprio festival, cujos filtros falharam. A crise se mostrou sistêmica quando outros cases de agências brasileiras igualmente expressivas também tiveram fraudes comprovadas. A inteligência artificial, nesse contexto, não foi a vilã, mas um espelho que amplificou um déficit ético que já existia.

O episódio deixou de ser um bastidor para se tornar uma lição pública com consequências tangíveis. A agência do Grand Prix teve o prêmio retirado, assim como outros conquistados em edições anteriores, sendo banida do festival por três anos. O prejuízo de imagem e a perda de confiança se somaram ao impacto econômico do rompimento de contrato com o anunciante, materializando o custo real da quebra de integridade. A lição é clara: sem uma base sólida de governança, diálogo e coragem, a hélice da mensagem, por mais brilhante que pareça, se desconecta da realidade e se torna uma ficção perigosa. A regeneração, como vimos, não pode ser apenas um discurso. Precisa ser, antes de tudo, uma prática.

Semeando o futuro, uma conversa de cada vez

A jornada rumo a uma publicidade regenerativa é longa e não possui um mapa definitivo. Ela será semeada em pequenos gestos, conversas e decisões diárias, em vez de ser conquistada por um grande plano diretor. O trabalho começa com as "frutas baixas": as ações que estão ao nosso alcance, aqui e agora. Começa com a coragem de iniciar um diálogo desconfortável, como este que o podcast Raízes da Inovação nos inspira a ter.

Independentemente da nossa posição no grande "tabuleiro" da indústria, todos temos o poder de plantar sementes. Uma pergunta incômoda em uma reunião de briefing. Uma proposta para contratar um fornecedor local com práticas justas. Um momento de autoanálise sobre o impacto do nosso próprio trabalho. Cada um desses atos é uma micro-revolução.

O ato regenerativo final na comunicação talvez seja transformar a natureza da própria conversa: de uma transmissão unilateral de persuasão para um diálogo de entendimento mútuo; de uma difusão de respostas para uma exploração conjunta de perguntas. Este artigo não é um ponto final. É um convite para "agir com o coração", encontrar a coragem de se implicar e participar ativamente da co-criação de uma indústria digna do seu imenso poder de moldar (positivamente) a consciência humana.


Assista ao episódio completo do Podcast Raízes da Inovação, com Carla Purcino:


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Carla Purcino é uma profissional de comunicação com mais de 20 anos de experiência em planejamento estratégico, branding e pesquisa. Atualmente, dedica-se a estudos de ESG, Regeneração, Inovação e Diversidade. Carla já trabalhou em grandes agências, consultorias e empresas, além de lecionar na Miami Ad School. Hoje, ela é diretora da Associação Brasileira de Propaganda (ABP).

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