Ancestral ou Artificial? Fique com os dois!

Negócios atualizados para o futuro: perfil, oportunidades e desafios.

Por Paulo Martinez 


Recentemente, tive o privilégio de mediar dois painéis instigantes no evento TokenNation 2025, em São Paulo. Os temas debatidos foram “Tecnologia Ancestral e Tecnologia Artificial: Combinações para Uma Nova Economia” e “Potencializando Finanças Regenerativas com IA”. Eles ressoam profundamente com a missão do Innovation Roots: fomentar a transição para a liderança consciente e os negócios regenerativos. Este artigo é um convite para explorarmos juntos os insights e as conexões que emergiram desses diálogos, fundamentais para navegarmos na complexidade do nosso tempo.

Negócios inovadores, lucrativos e com DNA de impacto

Empresas mission-driven não são mais uma exceção; elas representam a vanguarda dos negócios do século 21. O pensamento regenerativo deixa de ser um adendo, tornando-se parte integral do DNA dessas companhias, provando que é possível, sim, aliar lucro ao impacto socioambiental.

Exemplos notáveis no setor alimentício brasileiro ilustram essa vanguarda:

  • A Nuu Alimentos, fundada por Rafaela Gontijo, restagou a tradição do pão de queijo com uma abordagem inovadora e regenerativa, que hoje permeia toda a sua linha de produtos clean label. A fábrica da Nuu já nasceu carbono negativo; seu sistema de produção prioriza fornecedores locais, e a empresa possui liderança feminina. Além disso, utiliza inteligência artificial em todas as áreas, desde P&D até logística e negócios. Um belo exemplo da combinação de saberes tradicionais com a mais alta tecnologia, espalhada por mais de 2.300 pontos de venda.

  • A Nude, de leites vegetais e derivados, é reconhecida por aliar lucro e impacto socioambiental positivo, com certificação de Empresa B desde 2021. Representada no evento por Mariana Malufe (Partner e Chief Impact Officer), ela falou sobre iniciativas como a de estampar a pegada de carbono de cada produto nas embalagens (rotulagem climática) e também sobre o movimento #MostraSuaPegada, que incentiva outras indústrias a também divulgarem e neutralizarem suas emissões. Mariana também comentou sobre o "Não Relatório de Sustentabilidade” da Nude, que vale muito a pena saborear.

  • A Raizs, fundada por Tomás Abrahao, mostra o poder da tecnologia para fortalecer a agricultura familiar e orgânica, no modelo D2C (Direct to Consumer). A plataforma conecta mais de mil famílias de pequenos produtores a milhares de consumidores por meio de suas cestas de orgânicos recorrentes. A foodtech usa dados e IA para garantir preço justo, logística inteligente e reduzir drasticamente o desperdício de alimentos, que, no Brasil, equivale a 30% de toda a produção alimentar¹.

  • A Cura Lab, liderada pelo chef e pesquisador Rodrigo Ribeiro, une ciência e tradição para valorizar a biodiversidade brasileira. Combinando técnicas ancestrais, como a fermentação, e inteligência artificial, desenvolve produtos que geram impacto social, ambiental e sensorial. Em parceria com a Kiro, por exemplo, a Cura criou uma bebida inovadora, alinhada à tendência de redução do consumo de álcool entre a geração Z (40% a menos de consumo em relação às gerações anteriores²), oferecendo uma opção de switchel saborosa, funcional, natural e alinhada às novas demandas culturais.

📷 (Esquerda para direita) Paulo Martinez (Innovation Roots) • Rafaela Gontijo (Nuu Alimentos) • Rodrigo Ribeiro (Cura Lab) • Tomás Abrahao (Raizs) • Mariana Malufe (Nude) • Beto Bina (FarFarm)

📷 (Esquerda para direita) Paulo Martinez (Innovation Roots) • Rafaela Gontijo (Nuu Alimentos) • Rodrigo Ribeiro (Cura Lab) • Tomás Abrahao (Raizs) • Mariana Malufe (Nude) • Beto Bina (FarFarm)


Apesar do avanço de empresas pioneiras, como as exemplificadas, a principal barreira para uma mudança em larga escala não é financeira ou tecnológica, mas cultural. Poucos grupos empresariais detêm grande poder na cadeia global de alimentos, favorecendo um protecionismo que sustenta um modelo de produção focado em ultraprocessados e que esgota nossos recursos socioambientais.

Nesse contexto, as empresas com DNA de impacto surgem como uma importante contracultura. Além de desafiar o status quo, elas também representam uma imensa oportunidade de transformação para os players estabelecidos, seja por meio de investimentos, parcerias ou, simplesmente, pela inspiração para inovar. Os números evidenciam que essa não é uma tendência de nicho: o segmento de alimentos saudáveis no Brasil já responde por 1/5 (um quinto) do mercado total, com uma projeção de R$ 127 bilhões para 2025 e uma taxa de crescimento cinco vezes maior que a do setor tradicional³.

Fica claro, portanto, que a transição de um modelo de negócios degenerativo para um regenerativo vai além da escolha puramente ética, tornando-se um movimento estratégico para a relevância e sobrevivência futura.

Os três pilares das empresas atualizadas para o futuro

Empresas verdadeiramente preparadas para o futuro são construídas sobre uma base que vai além da visão tecnocêntrica e do paradigma do crescimento a qualquer custo. Elas se orientam por três pilares essenciais:

  • Presença: este pilar foca na criação de valor duradouro. Trata-se de construir negócios resilientes, adaptativos e evolutivos, cultivando estruturas que não se desfazem em prol de ganhos de curto prazo, mas mirando constantemente a construção de legado.

  • Perenidade: inspirada nos ciclos contínuos da natureza, a perenidade significa operar de forma a renovar e enriquecer os recursos (sejam eles naturais, sociais ou econômicos), em vez de esgotá-los. É a busca por um modelo de suficiência que possa florescer indefinidamente.

  • Prosperidade: aqui, a prosperidade é um conceito holístico que vai muito além do lucro financeiro. Ela abrange o bem-estar de todas as partes, incluindo a saúde dos ecossistemas, a coesão social e a realização individual.

Atuar nessa lógica de Presença, Perenidade e Prosperidade exige uma mudança fundamental na forma como enxergamos o mundo. Temos viés de associar inovação apenas à alta tecnologia e novidades, ignorando a fonte de dados e conhecimento mais vasta e antiga que existe: os 4,5 bilhões de anos⁴ de pesquisa e desenvolvimento da natureza e os milhares de anos de sabedoria dos povos antigos.

Como nos lembra o pensador Ailton Krenak, "o futuro é ancestral"⁵. Essa ideia não propõe uma ode ao passado, mas uma reintegração da sabedoria que reside na natureza e nas culturas tradicionais. Nessa mesma ótica, temos o conceito de "Two-Eyed Seeing" (Visão com Dois Olhos)⁶, do povo Mi'kmaq do Canadá, que nos ensina a enxergar o mundo com um olho nos saberes indígenas e outro nos saberes ocidentais, integrando ambas as visões para uma inovação mais profunda.

As empresas que incorporam essa "dupla visão" são as que realmente constroem futuro baseando-se na Presença, Perenidade e Prosperidade. Elas aprendem e incorporam os conhecimentos ancestrais de forma respeitosa, usando a tecnologia não para substituir, mas para amplificar essa sabedoria como potência. Como disse Rafa Gontijo, da Nuu Alimentos:

Tecnologia sem ancestralidade é só escala vazia mas também a ancestralidade sem tecnologia é uma potência não distribuída.❞ – Rafaela Gontijo (Nuu Alimentos)

Finanças Regenerativas (ReFi): O motor da nova economia

A transição para uma economia que sustente os pilares de presença, perenidade e prosperidade exige um sistema financeiro também atualizado. As Finanças Regenerativas (ReFi) emergem como uma força motriz, representando evolução significativa em relação às finanças tradicionais e mesmo às práticas ESG.

As ReFi buscam alinhar fluxos de capital à regeneração ambiental e social, indo além do paradigma de "não causar danos" para ativamente restaurar ecossistemas e comunidades. Elas se distinguem pela integração de tecnologias como blockchain, contratos inteligentes e inteligência artificial, aumentando a transparência, confiança e potencializando novos modelos econômicos.

No painel "Potencializando as Finanças Regenerativas com IA", que tive o prazer de mediar, exploramos como a tecnologia está impulsionando este campo. A conversa com Rogério Melfi (PilotIn), Lucca Benedetti (Mercado Bitcoin) e Richard Warrior (Genezys Capital) revelou tendências e aplicações concretas que estão moldando o futuro das finanças de impacto.

  • A democratização do acesso ao capital foi destacada como uma potencialidade da inteligência artificial e do Open Finance⁷ para criar novos modelos de crédito para projetos regenerativos — como os de bioeconomia e energia limpa — que atualmente são mal atendidos pelos instrumentos financeiros tradicionais. A IA, bem utilizada, permite uma análise de dados e riscos mais sofisticada e inclusiva.

  • Tokenização e rastreabilidade do impacto: discutimos exemplos práticos, como os tokens de carbono e biodiversidade que utilizam sensoriamento remoto, imagens de satélite e algoritmos para monitorar e validar o impacto ambiental em tempo real. Essa tecnologia oferece um nível sem precedentes de credibilidade e transparência, combatendo o greenwashing.

  • Escalabilidade on-chain de mercados globais: abordamos o imenso potencial de trazer para o ambiente blockchain mercados de grande escala, como o de Green Bonds (que já ultrapassa US$ 2 trilhões)⁸ e o mercado voluntário de carbono (estimado em US$ 50 bilhões até 2030)⁹. A integração de IA com blockchain pode potencializar ainda mais esses instrumentos.

📷 (Esquerda para direita) Paulo Martinez (Innovation Roots) • Rogério Melfi (PilotIn), Lucca Benedetti (Mercado Bitcoin) e Richard Warrior (Genezys Capital)

Olhando para um futuro próximo, a convergência entre IA e ReFi promete potencializar aspectos cruciais para um sistema financeiro atualizado:

  • Medição, Relato e Verificação (MRV) digitais: uso de IA e IoT para validar o impacto dos projetos de forma automática e contínua.

  • Otimização de portfólios de impacto: algoritmos que analisam múltiplos critérios para alocar capital de forma a maximizar tanto o retorno financeiro quanto o socioambiental.

  • Transparência e combate à fraude: a aliança entre a imutabilidade da blockchain e a capacidade analítica da IA para criar um ecossistema financeiro mais seguro.

  • Ganho de escala e personalização: automação via IA para que soluções financeiras regenerativas alcancem mais pessoas e projetos, de forma adaptada a cada necessidade.

O caminho (sem volta) da Economia Regenerativa

Estamos diante de uma nova realidade. Empresas com impacto do DNA demonstram que um novo modo de fazer negócios é possível. A sabedoria do "Futuro Ancestral", combinada com a alta tecnologia, nos oferece possibilidades incríveis para essa jornada. Ainda, a evolução e adoção das Finanças Regenerativas pode ser o combustível que precisamos para acelerar essa mudança.

A força desses conceitos está em seu entrelaçamento, formando a trama da Economia Regenerativa. Para que essa visão se espalhe, precisamos de uma liderança ativa e atualizada, capaz de desenhar e construir negócios orientados pelos pilares de Presença, Perenidade e Prosperidade. É assim que transformamos o discurso sobre futuros em nossa prática diária..


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Paulo Martinez é empreendedor, comunicador, tecnólogo e designer de sistemas regenerativos com 25 anos de carreira. É co-fundador e sócio do Grupo Ginga (ginga.group), co-fundador do Distrito (distrito.me), além de co-iniciador e publisher das comunidades intencionais GIRA (gira.xyz) e Innovation Roots (innovation-roots.com). Paulo também é membro do conselho e professor titular do IMGP (mestregp.com.br).

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Referências citadas:

  1. Desperdício de alimentos de 30% no Brasil;

  2. Geração Z (40% a menos de consumo de álcool em relação às gerações anteriores);

  3. Mercado de Alimentação Saudável;

  4. Idade do Planeta Terra (4.5 bilhões de anos);

  5. Ailton Krenak, Futuro Ancestral;

  6. Two Eyed Seeing;

  7. Open Finance;

  8. Green Bonds;

  9. Mercado de Créditos de Carbono Voluntário;

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A solução é uma ilusão