Economia e Ecologia: o reencontro de duas irmãs (Satish Kumar)

📷 Satish Kumar

Superando a ignorância de uma gestão sem conhecimento da vida.

Por Paulo Martinez 


Tive a honra de participar de uma série de encontros com Satish Kumar¹, promovidos pela Escola Schumacher Brasil. Ouvir Satish, prestes a completar 90 anos, é beber direto na fonte de uma sabedoria que transcende o tempo. Para muito além de conceitos, ele nos convida a uma reconfiguração ontológica da nossa relação com o mundo.

Este é o primeiro artigo de uma série de quatro, inspirada nos encontros com Satish, onde cada artigo aborda um tema distinto:

  1. Equilibrando Economia e Ecologia;

  2. Solo, Alma, Sociedade: uma nova tríade para o nosso tempo;

  3. Amor Radical: conectando o Eu com as Pessoas e o Planeta;

  4. Ciência e Espiritualidade: uma nova síntese para a educação holística

Quando Satish fala sobre “equilibrar economia e ecologia”, ele expõe uma das grandes feridas da nossa civilização, ressoando com a essência do que investigamos no Innovation Roots: a urgência de reintegrar sistemas que jamais deveriam ter sido separados.

A ignorância na gestão sem conhecimento

Satish inicia com uma lição etimológica que desmonta a arrogância do mercado financeiro atual. Ambas as palavras (ecologia e economia) vêm do grego oikos, que significa “casa”.

  • Ecologia (Oikos + Logos) é o conhecimento da casa.

  • Economia (Oikos + Nomos) é a gestão da casa.

O paradoxo moderno é que separamos essas duas irmãs gêmeas. Temos economistas gerindo uma casa que desconhecem. Como Satish relatou brilhantemente sobre sua palestra em uma tradicional escola de economia britânica: ao serem questionados sobre o que é ecologia, os acadêmicos admitiram não estudá-la.

Como você vai gerenciar algo que você não conhece?
– Satish Kumar

Se não compreendemos o ecossistema — que inclui humanos, animais, oceanos, florestas e solo — nossa gestão (economia) está fadada ao desastre. Satish provocou, e eu concordo: deveríamos renomear nossas instituições para “Moneynomics“ e não Economics, pois o que ensinam e praticam é a gestão de finanças, não a economia real da vida.

A ilusão da separação

O erro fundamental que cometemos ao desenhar nossos modelos de negócio e de sociedade está na premissa da separação. Tratamos a natureza como um “recurso” externo, um estoque infinito de bens e serviços para servir à economia.

Satish nos lembra que “natureza” vem do latim natura, que significa “nascimento”. Tudo o que nasce é natureza. Mas ele vai além, fundamentando essa união na própria constituição da matéria. Somos feitos dos mesmos cinco elementos que compõem montanhas, florestas e estrelas: terra, ar, fogo, água e espaço, animados por um sexto elemento, a consciência.

Não estamos acima da natureza, nem somos seus donos. Essa visão antropocêntrica de superioridade é a raiz da policrise que enfrentamos. Para avançarmos, precisamos adotar a visão da Ecologia Profunda (Deep Ecology), trazida por Arne Næss², que reconhece o valor intrínseco de cada ser. Precisamos transitar de um universo de objetos inertes para uma “comunhão de sujeitos”, como dizia Thomas Berry³. A Terra não é uma pedra inanimada girando no espaço; ela é um organismo vivo e autorregulado, como nos ensinaram James Lovelock⁴ e Lynn Margulis⁵.

A geometria do crescimento: vertical x horizontal

Um dos insights mais poderosos que Satish trouxe conecta-se diretamente com nossa crítica à obsessão pelo crescimento infinito. Ele distingue duas geometrias de crescimento:

  1. Crescimento Vertical (Linear): o modelo atual. Poucas árvores (ou bilionários) crescem indefinidamente, sugando recursos e deixando a maioria na sombra. É uma economia de exclusão e acumulação.

  2. Crescimento Horizontal (Cíclico): o modelo da floresta. As árvores crescem até um ponto ótimo e param, permitindo que outras cresçam ao lado. É uma economia distributiva, onde o sucesso de um sistema alimenta o outro.

Na natureza, não existe descarte; o resíduo de um processo serve como nutriente para o próximo. Nossa economia linear (”extrair, usar, descartar”) é uma anomalia biológica. A verdadeira inovação econômica deve ser cíclica (como propõe a Economia Donut de Kate Raworth⁶) e horizontal, onde a prosperidade é compartilhada como a luz do sol e o ar.


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Liderança: do emprego ao trabalho

Quando questionado sobre a liderança necessária para este tempo, Satish foi cirúrgico: precisamos de líderes humildes, conscientes de que o desperdício é um pecado contra a vida. Mas, mais do que isso, ele propõe uma ressignificação da nossa atuação profissional.

Precisamos transitar do conceito de emprego (job) para trabalho (work).

  • Emprego é o que você faz apenas pelo dinheiro.

  • Trabalho é o que você faz por amor, cuidado e propósito.

Uma economia de cuidado (Care Economy) surge quando líderes de qualquer segmento atuam não apenas pela transação financeira, mas pela vocação de servir à vida. O dinheiro torna-se consequência, a “cereja do bolo”, e não o motor principal.

Tecnologia: serva ou mestra?

Um ponto crucial para o Innovation Roots, que lida com as raízes da inovação, foi a visão de Satish sobre a tecnologia. Ele desconstrói a dicotomia “Tecnologia vs. Natureza”.

A tecnologia, segundo ele, é também natureza, pois nasce da consciência humana e utiliza recursos da Terra. O problema não está na tecnologia em si (seja IA ou nuclear), mas na consciência que a sustenta.

Se você desenvolve tecnologia sem desenvolver sabedoria, compaixão e inteligência, você cria destruição.
– Satish Kumar

A tecnologia deve ser uma serva da ecologia, não sua mestra. Deve ser usada para proteger a vida, não para controlá-la ou destruí-la em nome do lucro.

A mudança vem da base

Satish, com a autoridade de quem acompanha a geopolítica ambiental há décadas, nos propõe um realinhamento de expectativas. Frequentemente, projetamos nas grandes conferências e nos centros de poder globais a responsabilidade exclusiva pela “salvação” do planeta. No entanto, ele nos alerta para as limitações naturais dessas estruturas centralizadas, que tendem a focar na mitigação de sintomas (como as métricas de carbono) sem necessariamente abordar a causa: um modelo mental e sistema econômico desconectados da vida.

Para ele, a espera por soluções que venham exclusivamente de cima para baixo é uma armadilha. “A mudança não virá apenas dos palácios governamentais. A mudança virá da base (grassroots)”, defende. Ao fazer isso, Satish desmonta o mito do líder heróico e devolve a soberania a cada pessoa: “Você é o líder. Eu sou o líder.”

Essa perspectiva é a base da liderança regenerativa que exploramos no Innovation Roots. Não se trata de ignorar a importância das regulações, mas de assumir a nossa capacidade de ação imediata. A pergunta central muda de quando eles resolverão? para o que eu posso fazer agora?. Os problemas globais, quando aterrissados, revelam-se oportunidades locais de atuação, seja na refundação da cultura de uma empresa, na forma como consumimos, produzimos ou em iniciativas comunitárias.

A solução deixa de ser uma abstração burocrática quando entendemos que a verdadeira economia consiste na gestão sábia e amorosa da nossa casa comum. O convite final é para deixarmos de aguardar um milagre externo e voltarmos a caminhar com firmeza sobre as duas pernas que nos sustentam: Ecologia e Economia, operando juntas através de nossas próprias mãos.

 
 

Acesse os encontros com Satish Kumar na íntegra

Acesse os encontros com Satish Kumar na íntegra ✦


Paulo Martinez é empreendedor, comunicador, tecnólogo e designer de sistemas regenerativos com 25 anos de carreira. É co-fundador e sócio do Grupo Ginga (ginga.group), co-fundador do Distrito (distrito.me), além de co-iniciador e publisher das comunidades intencionais GIRA (gira.xyz) e Innovation Roots (innovation-roots.com). Paulo também é membro do conselho e professor titular do IMGP (mestregp.com.br).

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Inspirada no legado de Satish Kumar, a Escola Schumacher Brasil é uma comunidade de aprendizagem que oferece educação transformadora, enraizada em ecologia profunda, pensamento complexo e diálogos decoloniais, para apoiar pessoas e organizações em transições pessoais, profissionais e socioambientais.

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Referências citadas:

  1. Satish Kumar: Ativista, editor emérito da revista Resurgence & Ecologist e fundador do Schumacher College. Autor de obras como Solo, Alma, Sociedade (2013) e Amor Radical (2023).

  2. Arne Næss: Filósofo norueguês que cunhou o termo “Ecologia Profunda” (Deep Ecology), enfatizando que a natureza tem valor intrínseco, independente da sua utilidade para os seres humanos. Obra de referência: Ecology, Community and Lifestyle.

  3. Thomas Berry: Sacerdote, historiador cultural e “geólogo”, autor de O Sonho da Terra (The Dream of the Earth). Sua obra propõe que o universo é uma “comunhão de sujeitos, não uma coleção de objetos”.

  4. James Lovelock: Cientista independente e ambientalista, criador da Hipótese Gaia, que propõe que a Terra funciona como um sistema autorregulado. Obra de referência: Gaia: A New Look at Life on Earth.

  5. Lynn Margulis: Bióloga e professora, principal colaboradora de Lovelock na Teoria de Gaia e revolucionária na teoria da endossimbiose. Obra de referência: Symbiotic Planet: A New Look at Evolution.

  6. Kate Raworth: Economista inglesa, criadora do modelo da “Economia Donut”, que busca equilibrar as necessidades humanas essenciais dentro dos limites planetários. Obra de referência: Economia Donut: Uma alternativa ao crescimento a qualquer custo.

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